Porco no barro: um resgate cultural e gastronômico em Tiradentes

Porco no barro: um resgate cultural e gastronômico em Tiradentes

O processo é lento e bastante artesanal. É preciso cortar, separar, cozinhar e fritar o porco. E, só depois, acondicionar em um recipiente para conservar. Tudo isso é o que chamamos comumente de preparo de véspera. Na edição que comemora os 300 anos de Tiradentes, nada melhor que o Festival Cultura e Gastronomia resgatar uma tradição culinária mineira que data da origem da cidade: a carne em lata.

A técnica, que é conhecida internacionalmente como confit, consiste em cozinhar e conservar carnes na própria gordura. Algo que foi criado principalmente quando não existiam os recursos atuais de freezers e congeladores para manter os alimentos em um estado adequado para o consumo.

O trabalho de resgate da carne de lata é parte do projeto Primórdios da Cozinha Mineira, do Senac Minas, que, entre outras pesquisas, detalhou cinco técnicas antigas de conservação da carne em Minas Gerais. O “porco no barro”, uma das mais tradicionais, foi tema de uma aula especial, no Espaço Degustação, no sábado, dia 1º de setembro.

A técnica do porco no barro era utilizada por moradores de Tiradentes há centenas de anos e, por pouco, não se perdeu no tempo. O trabalho foi examinado pela consultora em pesquisas gastronômicas do Senac, Vani Pedrosa, e executado por meio de receitas pelo chef Ronie Peterson. “Quando a pessoa reconhece a própria história, ela dá valor aos sabores perdidos. Minas soube preservar essa história e conservar a tradição”, revela Vani.

Mas, muito diferente do que conhecemos hoje — e até do nome que é popularmente chamada, o alumínio foi o último dos materiais em que a carne em conserva foi acondicionada. A história conta que antes da lata em si, foram utilizadas as vasilhas de ferro, pedra e, claro, de barro.

A pesquisadora conta que foi preciso ir a fundo nos pequenos produtores locais para identificar aqueles que ainda mantinham essa tradição para aprender e vivenciar a experiência da carne de porco que era conservada em barro. “Com o trabalho de pesquisa, nós vimos que conhecíamos muito pouco, somente a ponta do iceberg. Então, buscamos resgatar isso. Fomos entender a formação dos pilares da culinária mineira, a sua origem. E nada melhor que ir atrás dos ingredientes e de quem faz: os produtores e famílias das regiões”, explica a pesquisadora.

Mão na massa – Porco no Barro

A carne conservada na própria gordura dentro de vasilhames de barro promove sensações ao paladar que outros preparos não proporcionam. Foi aí então que o chef Ronie Peterson, responsável por representar o Senac Minas em competições nacionais e internacionais de gastronomia, entrou em cena. “É importante sair do fogão e encontrar tudo que a história pode fornecer para a nossa cozinha. Para materializar essa pesquisa, entendemos a carne e como os sabores funcionam”, revela o chef.

Peterson apresentou durante a aula no Festival uma receita de carne de porco no barro com uma adaptação do feijão com “trupico”, outra delícia mineira. “A carne de lata no processo atual tem diferenças importantes de sabor, principalmente porque usa basicamente o lombo e o pernil do porco. Antigamente, eram utilizados todos os pedaços do porco, algo muito rico. Estamos resgatando isso e trazendo várias cortes nas receitas”, diz.

Além do preparo demorado da carne, que pode levar até um dia para ser concluído, há, ainda, o período de maturação. “O ideal é consumir a carne após 30 dias em que está conservada. O ápice do sabor acontece até o terceiro mês”, explica Vani Pedrosa.

A importância do resgate histórico

Pode parecer exagero mas não é: a carne de porco sempre esteve na história de Minas. Seja com as tribos indígenas ou com a chegada dos portugueses, a facilidade de se trabalhar com o animal garantiu que ele fosse sempre um dos preferidos para a culinária.

A carne de porco, até hoje um dos chamarizes da gastronomia mineira, era trabalhada principalmente por índios de tribos como os Puris, que se mantiveram por muito tempo na região de Tiradentes.

A convivência entre tribos, imigrantes e os moradores locais ao longo dos anos, fez com que a tradição das vasilhas de barro fosse transmitida pelos séculos. Produtores tradicionais da região como o senhor Tião Paineira, falecido no último mês de abril e que fez parte da história da cidade, mantiveram a técnica viva e pulsante pela cidade. “Tudo isso movimenta uma cadeia inteira. Os produtores de vasilhas de barro, os criadores locais de porcos, os donos de restaurantes que compram o material e os turistas. Isso valoriza a cidade, os ingredientes e o produto”, relata a pesquisadora Vani Pedrosa.

Com a pesquisa, segundo Vani, é possível, ainda, auxiliar no processo de legislação dos preparos para que eles sejam devidamente autorizados pelos órgãos reguladores. “Ajudamos a corroborar o trabalho dos produtores para evidenciar e comprovar detalhes técnicos que são essenciais para que haja todas as autorizações para comercialização”.

Cozinha: memória e afeto

Enquanto a pesquisa fortalece a tradição do porco no barro, ver a técnica sendo novamente difundida mexeu com a memória e com as emoções de muita gente que participou e assistiu a aula, durante o Festival.

É o caso da chef e produtora Carla Josiane, de Tiradentes, que auxiliou na execução da receita e é uma entusiasta desse tipo de preparo. “Eu trabalho para a conservação deste patrimônio mineiro. Vivi e aprendi esse processo de fazer a carne em lata com minhas tias, avós e mãe. Por isso, faço questão de ajudar em tudo e passar isso adiante”, conta a chef.

Ela esteve durante todo o tempo da aula acompanhada pela filha Júlia, de 8 anos, que já é uma “miniapaixonada” pela culinária mineira. “Na noite passada fiquei com minha mãe até tarde fazendo os preparos para essa receita de hoje”, diz, orgulhosa, a pequena.

Rita Dias e José Dias, casados há 45 anos, são de Santos Dumont, na região da Zona da Mata, e vieram pela primeira vez participar do Festival. Já de cara eles se emocionaram ao participar da aula no Espaço Degustação. “Nós fomos criados na roça e vimos tudo isso sendo feito no nosso berço, com nossas famílias”, conta Rita.

José destaca a felicidade de ver processos como o da carne em lata sendo resgatados em sua origem. “A palavra que eu posso usar é ‘lindo’. É bom rever, ser transportado pelas memórias afetivas e saber que há pessoas interessadas em manter vivas as tradições para as próximas gerações”, conta.