Comida como patrimônio

Comida como patrimônio

Comida é patrimônio. Dito assim, parece apenas frase de efeito. Mas, não. Os saberes da alimentação, da biodiversidade dos ingredientes às formas de produção e preparo, se configuram como bens imateriais e intangíveis da cultura dos povos, inclusive os brasileiros. Como tal, podem e devem ser registrados e tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. Por isso considera-se comida como patrimônio.

Em nível regional, cada estado conserva seu próprio acervo, a exemplo do mate e do biscoito Globo, no Rio; do virado à paulista, em São Paulo; e do bolo de rolo, em Pernambuco. “Para que um fazer seja considerado patrimônio nacional, é preciso comprovar no tempo que ao menos três gerações desenvolvem aquela técnica, o que caracteriza transmissão de saber”, explica a museóloga Celia Corsino, superintendente do Iphan em Minas Gerais. O processo é longo e complexo, já que a política de salvaguarda, sobretudo no Brasil, é difícil de ser implantada e estabelecida.

Mas o Iphan colheu vitórias na última década. Em Salvador (BA), por exemplo, o ofício da baiana do acarajé foi inscrito no Livro dos Saberes em 2005. Mais que a confecção artesanal do célebre bolinho de feijão-fradinho, frito no azeite de dendê, o tombamento inclui também um bocado de história: a receita original foi trazida pelos escravos africanos, vindos da Nigéria, e estava ligada aos ritos do candomblé, como iguaria oferecida aos orixás. Remete também ao período de abolição da escravatura, quando a venda do quitute se transformou em fonte de renda das mulheres.

Comida como patrimônio – O modo artesanal de fazer queijo em Minas Gerais é outro conhecimento tombado pelo Iphan, mas especificamente as microrregiões do Serro, da Serra da Canastra e do Salitre. Inscrita em 2008, a produção também se reporta ao passado colonial, como meio de conservação do leite cru. Inspirados na produção portuguesa da Serra da Estrela, os mineiros desenvolveram métodos de manipulação muito próprios, como o acréscimo do pingo, fermento lácteo tirado do próprio soro. Sem falar das especificidades de cada terroir, afetadas pela cultura, pelo clima e até pelo solo.

Dada a diversidade da flora e da fauna, o sistema agrícola No Alto Rio Negro (AM) não poderia ser menos complexo. O tombamento, realizado em 2010, se alicerça no cultivo da mandioca-brava, desenvolvida por mais de 20 povos nativos nos arredores do Rio Negro, em municípios como São Gabriel da Cachoeira e Barcelos, no noroeste do Amazonas. Embora pouco disseminada, a cultura indígena encontrada ali, essencial para a subsistência das comunidades, se expande ainda para a preservação da floresta amazônica e para os modos de produção, seja por meio da agricultura ou nas atividades de caça, pesca e coleta de frutos, plantas e ervas.

E o que dizer da cristalina cajuína, “a que será que se destina?” A tradicional bebida nordestina é consumida, especialmente, no Piauí e foi tombada em 2014. Preparada a partir do suco de caju clarificado, é degustada como licor, embora não contenha álcool: as variações de cor, doçura, leveza e densidade variam conforme o terroir, que engloba tanto pela qualidade do fruto quanto as diferentes técnicas usadas pelos produtores. “Tudo isso torna o modo de preparo artesanal altamente valioso como bem cultural imaterial”, garante Celia Corsino.

O tombamento mais recente é do sistema agrícola tradicional das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira (SP), oficializado em setembro de 2018. Herança dos conhecimentos africanos e indígenas, o conjunto de técnicas de como utilizar os recursos agrícolas foi passado de geração a geração, e, mais recente, fundamentou-se por meio de pesquisas científicas. Ao serem registrados como patrimônio cultural, os procedimentos intensificam o cumprimento da legislação ambiental, bem como a própria valorização das técnicas tradicionais de agricultura.

Ainda há muitos outros bens a serem devidamente catalogados e, com sorte, tombados como parte imaterial de nossa cultura. Estão em processo de registro: o ofício das quitandeiras, em Minas; a produção de doces tradicionais, em Pelotas (RS); o ofício das tacacazeiras, na Região Norte; os cocos do Nordeste; o modo de fazer queijo artesanal em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul; a Feira de São Joaquim, em Salvador (BA). País grande e diverso é assim!